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BUEL-BULE e EPICTETO

 





Bule- Bule e Epicteto 


Por Joelson Nascimento


Antônio Ribeiro da Conceição, ou Bule-Bule, como é mais conhecido, é um músico, repentista, cordelista, cantador e poeta nascido em 22 de outubro de 1947 no município de Antônio Cardoso, Bahia. Mudou-se para Salvador, local onde veio a gravar pela primeira vez em 1979 num LP coletivo. Conseguiu lançar seis álbuns: Cantadores da Terra do Sol, Série Grandes Repentistas do Nordeste, A Fome e a Vontade de Comer, Só Não Deixei de Sambar, Repente não tem Fronteiras e Licutixo; Quatro livros (Bule Bule em Quatro Estações, Gotas de Sentimento, Um Punhado de Cultura Popular, Só Não Deixei de Sambar. Lançou também cerca de mais de 80 cordéis. No ano de 1993 recebeu o título de cidadão honorário da capital baiana, pela então prefeita Lídice da Mata; em 2008 recebeu a medalha da Ordem do Mérito Cultural em 2017 recebe a homenagem da Bienal Internacional do Livro do Ceará além do Prêmio Hangar de Música no Rio Grande do Norte junto com Margareth Menezes e Ivete Sangalo.  Atualmente ele é diretor da Associação Baiana de Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia e da Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel. 

Epicteto, escravo liberto por Epafrodito, aluno do filósofo Musônio Rufo, torna-se um dos nomes mais importantes da filosofia estoica. Nasceu em Hierápolis, na região da Frígia, contudo não se sabe exatamente em que ano nasceu. A única data confiável a seu respeito é que abandonou Roma por volta de 94 e se dirigiu para Nicópolis. Diferente da maioria dos filósofos da época, nada escreveu, contudo, seus ensinamentos foram registrados por seu dedicado aluno Lúcio Flávio Arriano Xenofonte e reunido em oito livros, dos quais quatro foram perdidos, livros que compunham as Diatribes de Epicteto.      

Mas o que há em comum entre duas figuras tão distintas e distantes no tempo. Podemos dizer que ambos, com suas distintas formas de expressão, nos ensinam o preço de uma vida tranquila e feliz, o que nos surpreende pelo valor cobrado. Permita-nos explicar. 

Epicteto, em sua Diatribe 1.18, nos adverte pelo fato de nos irritamos com aqueles que comentem faltas contra nós: Homem, se precisas se indispor contra a natureza pelos males de outrem, antes tem pena dele que ódio. Abandona essa propensão para te ofenderes e odiares. Que tu não digas estas palavras que muitos do que amam censurar proferem: ‘Esses malditos e imundos tolos!’ Que o sejam. Quando tu te tornaste subitamente sábio para te irritares com os outros? Então por que nos irritamos com os que nos roubam? Porque admiramos as coisas que nos são tomadas. Não admires as tuas togas e não te irritarás com o ladrão. Não admires a beleza de tua mulher e não te irritarás com o adúltero. Sabe que o ladrão e adúltero não têm lugar entre as tuas coisas, mas entre as de outrem e as que não dependem de ti [] Também eu, tenho uma lâmpada ao lado do larário. (1) Recentemente, ao escutar um ruído na janela, desci correndo - e descobri que a lâmpada fora levada. Conclui que quem a levou sentiu algo não pouco persuasivo. E então amanhã, disse eu, encontrarás uma feita de barro(2) 

 

       Nessa passagem, o que Epicteto propõe para um bom fluxo da alma (euroia) é perceber que a irritação é fruto do valor que damos às coisas que não possuem valor por si mesmas. O ladrão e o adúltero, como bem explica o filósofo, são aqueles que são escravos de seus desejos por considerarem as coisas que não são nem bem nem males como bens. Por que se irritar com pessoas que julgam erroneamente a realidade? Nossa irritação é a consequência de nossa falta de sabedoria em lidar com as circunstâncias. O que Epicteto nos ensina não é apenas como melhorarmos como ser humano, mas como evitarmos pessoas que têm em alta conta coisas que sabiamente devemos não valorizar, fato que culminará em nossa própria felicidade por não permanecermos ao lado delas. Por exemplo, como evitar que sejamos roubados? não possuindo objetos pelos quais os ignorantes se sacrificam. É claro que precisamos dos objetos em nosso dia a dia, todavia eles não precisam possuir uma existência mais significante do que a nossa. Se este é o caso, elas persuadirão aqueles que as tomam como indispensáveis à sua existência. Por isso Epicteto troca sua lâmpada por uma ordinária, ou seja, um objeto não persuasivo a um larápio. 

Da mesma forma, mas agora em poesia, 2000 anos depois, Bule-Bule nos traz a ideia epictetiana de felicidade ao trocar as coisas persuasivas por aquelas menos persuasivas àqueles que entendem que quanto mais glamorosa uma coisa for mais ela contribuirá para a uma vida feliz: 

  


A Máquina de Lavar Roupa

Bule -Bule


A máquina de lavar roupa / Eu troquei numa gamela

Deixe quem quiser falar / Mamãe se dá bem com ela

Troquei a geladeira numa talha / Minha blusa de nylon num gibão

O meu filtro chinês por um porrão / Meu chapéu de baeta num de palha

Minha moto num burro de cangalha / O revolver numa baleadeira

O tapete importado numa esteira / Uma jarra vidrada por moringa

Meu whisky escocês eu dei por pinga / E a guitarra em viola de madeira

A lasanha gostosa do almoço / Eu consegui coragem pra trocar

Por buchada e carne pra assar / Vou comendo com bem menor esforço

Troquei kibe por carne de pescoço / Cocaína branquinha por rapé

O sapato caríssimo do meu pé / Troquei numa alpercata de rabicho

Faço isso com garra e com capricho / Ser feliz eu espero e tenho fé.



Então, caro leitor, qual o preço da sua felicidade? 



Notas

(1) Conforme Dinucci (2020), local, nas residências romanas, dedicado às divindades protetoras do lar.
(2) Epicteto, Diatribes, 1. 9-15. Tradução de Aldo Dinucci


Referências

DINUCCI, A,  As Diatribes de Epicteto, livro I. Imprensa Universidade De Coimbra, 2020.

DINUCCI, A.; JULIEN, A. (ORG)  Epicteto: Fragmentos e Testemunhos. Tradução dos fragmentos gregos e notas Aldo Dinucci e Alfredo Julien. Textos de Aldo Dinucci, Alfredo Julien e Fábio Duarte Joly. 

Https://www.last.fm/pt/music/Bule-Bule/+wiki

Https://pt.wikipedia.org/wiki/Bule-Bule

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