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RESENHA: Manual de Estoicismo: a visão estoica do mundo

                                                                                                                             

                                       




                                                                                RESENHA 

(DINUCCI, Aldo, Manual de Estoicismo: a visão estoica do mundo, 1ª ed. Campinas, SP, Editora Auster, 2023).

                                                                                                                                                                                                                                                                                              Por Joelson Nascimento  

É-nos anunciado que Zenão foi consultar o Oráculo. Ao questioná-lo sobre a melhor maneira de se viver, ouve a seguinte resposta: torna-se da cor dos mortos.”(2) É exatamente o que aconteceu, após vinte anos de leituras, fichamentos, resenhas e resumos sobre lógica, física e ética nos estoicos, com o filósofo brasileiro Aldo Dinucci, no momento em que nos presenteia com uma obra resultante dessa máxima oracular. 

O livro Manual de Estoicismo: a visão estoica do mundo, inovador, por abordar o caráter comunitário do estoicismo; ousado, por  oferecer ao público leigo uma visão não simplista da filosofia estoica, mas a expondo em toda sua complexidade; corajoso, por exortar o leitor a escrever o seu próprio manual, nos chega em um momento no qual o estoicismo é amplamente fagocitado pelo capitalismo, despojado de sua filosofia de vida e tratado como mero exercício para o aumento de produtividade na vida e no trabalho. Nada melhor do que uma obra preocupada, dentro de sua limitação temporal, é claro, a nos transmitir o que o autor chama de espiritualidade estoica

Alguns leitores, ávidos por entrar de chofre na filosofia dos estoicos, podem considerar o Capítulo I um pouco desnecessário, por tratar rapidamente sobre as biografias dos principais estoicos da antiguidade. No entanto, um leitor mais atento perceberá que, na primeira citação do capítulo, atribuída a Joaquim Nabuco, temos a seguinte reflexão: olhei a vida nas diversas épocas através de vidros diferentes…mas em despedida do Criador, espero ainda olhá-la através dos vidros de Epicteto, do puro cristal sem refração…Esse é um pensamento que anuncia um dos princípio mais belos do estoicismo: aprender com os melhores em virtuosidade, com  aqueles que nos deixaram como legado o bem viver. Daí a importância de conhecermos um pouco da vida de Zenão, Crisipo, Cleantes e tantos outros que contribuíram para o que hoje chamamos de estoicismo. Além disso, Dinucci tenta nos colocar no mundo grego mostrando como esses filósofos foram importantes em momentos históricos da época, a exemplo de Catão de Útica contrapondo-se a Júlio César, Musônio Rufo, ao participar da Oposição Estoica, Sêneca, ao ser acusado de participar na conspiração de Pisão. Ainda temos aqueles de origem mais simples, como Zenão, um náufrago, Cleantes, um lutador de boxe e carregador de água, Epicteto, um escravo, todos servindo como lastro para a riqueza e originalidade do pensamento estoico. Mesmo sendo de origem mais nobre, Marcus Aurélio nos é apresentado como um homem justo, não entregue aos vícios e às paixões.

No capítulo II, História da Filosofia Estóica, Dinucci nos traz novamente o importante caráter histórico para compreensão da filosofia estoica, destacando um feliz encontro entre Europa e África. Zenão, o fundador do estoicismo, é um fenício da ilha de Chipre que naufraga nas costas de Atenas perdendo sua preciosa carga de púrpura. Quando chega em Atenas, na condição de náufrago, procurou adquirir conhecimento com os filósofos da época. A partir de então, passa a expor seu pensamento no Pórtico Pintado (stoa poikile). Fato pouco comentado entre nós é que os fenícios têm uma íntima ligação com a África, tendo fundado diversas cidades nas costas africanas, como Útica e Cartago, na atual Tunísia, e Lixus, no atual Marrocos, entre outras.

Em seguida, Dinucci aborda a filosofia estoica em suas três principais partes: física, ética e lógica. A Física nos ensina como o mundo se formou. Através do Fogo primordial, também chamado de Lógos, Zeus, Inteligência Universal, todas as coisas que passaram a existir. Providencialmente, fornece a cada ser o que é preciso para a sua existência. Como destino, determina o encadeamento de fatos que ocorrem no Cosmos. Como ação demiúrgica, dá forma ao Cosmos, criando os quatro elementos fenomênicos que compõem todos os seres do mundo: fogo e ar unem-se para formar o pneuma, água e terra unem-se para formar a matéria. Em seguida, o pneuma une-se à matéria fornecendo-lhe qualidade e forma, surgindo, com isso, os corpos individuais.  No entanto, essa ação não é suficiente para diferenciar os corpos. É necessário que o pneuma movimente-se de forma distinta, dando a cada corpo forma e qualidade únicas: movimento da hexis para a natureza dos seres inanimados, physis para as plantas, psyche para os animais e hegemonikon para a natureza da alma humana racional.

Após a exposição da física e seus conceitos mais importantes, Dinucci conclui que o Cosmos como um todo é, para os estoicos, um ser vivo; o Cosmos, assim como a Ave Fênix…renasce das próprias cinzas; o Cosmos é Providencial.

No tocante à Lógica, diferente das lógicas formais modernas, está inserida na disciplina a teoria do conhecimento, a teoria da linguagem, a lógica proposicional, o estudo dos sofismas e a retórica. Abordando o tema através da teoria do conhecimento, Dinucci nos apresenta o conceito de representação (phantasia), entendido pelos estoicos como uma imagem produzida e interpretada logicamente pela nossa alma racional a partir dos dados fornecidos pelos sentidos: em outras palavras, os dados dos sentidos são interpretados pela inteligência, que pode realizar bem ou mal tal tarefa. 

A representação humana se distingue da representação dos animais por conta de sua articulação linguística. Aqui nos é mostrado o conceito de dizível (lekton): aquilo que pode ser proferido e que, portanto, constitui o sentido das palavras.

No que concerne a Ética, Dinucci demonstra sua íntima ligação com a física e lógica: Como foi visto na parte da física, o pneuma possui movimentos distintos que qualificam e fornecem formas aos corpos. O movimento do hegemonikon, inserido nos corpos humanos, possui um grau de tensão que nos torna capaz de conhecer a realidade. De acordo com a lógica, esse conhecimento se dá através de uma interpretação correta do dado sensorial pela alma racional. Possuindo uma interpretação correta da realidade, o ser humano pode responder adequadamente aos estímulos externos, tornando-se virtuoso e feliz e realizando a própria natureza.

No capítulo III,  A Prática do Estoicismo, é abordado o pensamento estoico pelo viés da praticidade. Para isso, Dinucci utiliza-se do filósofo estoico Epicteto e de sua divisão da filosofia em três respectivos tópicos: o tópico do juízo ou do desejo, o tópico da ação e o tópico da persuasão. O primeiro deles, com o intuito de reparar os erros do juízo que herdamos do senso comum em relação ao valor das coisas do mundo, é dividido em dois teoremas: o Teorema Ontológico e o Teorema da Gratidão.

 O Teorema Ontológico faz a distinção entre as coisas que estão e que não estão sob nosso controle (eph’hemin). Ao analisar a expressão grega, cujo significado literal é o que está sobre nós, Dinucci compreende que as coisas sobre nosso controle são aquelas que nos têm como causa, o que faz traduzi-la por coisas que estão sob o nosso encargo. A aplicação do teorema é a compreensão de que nenhuma coisa externa é, por si mesma, um bem ou um mal, pois esses valores são frutos de nossas concepções sobre as coisas e o mundo às quais damos assentimento. Apenas as coisas que estão sob nosso encargo, ou seja, o juízo, o desejo, o impulso, a repulsa, devem ser consideradas um bem ou um mal, as que não estão sobre nosso encargo,  o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos, são materiais da nossa escolha.

O Teorema da Gratidão, permita-nos afirmar, o mais belo dos teoremas, passa pela reavaliação do que é o próprio mundo e sua relação para com cada ser existente, o que leva à questão do reconhecimento da Providência do Mundo e do ato de dar-lhe graças. Para isso, Dinucci expõe quatro premissas fundamentais: 1) o ser humano que põe seu bem em coisas fora de seu encargo acusará a Deus quando essas coisas lhe forem retiradas, e não será, portanto, grato a Deus; 2) será grato a Deus o ser humano que põe seu bem em coisas sob seu encargo…; 3) será grato a Deus o ser humano que reconhece que Deus concedeu a todos os humanos a capacidade de escolha desimpedida; 4) será grato a Deus o ser humano capaz de reconhecer a Providência Divina nas coisas que lhe foram dadas para o suprimento de sua própria vida.

No tópico da ação, Dinucci nos mostra o papel humano de partícipe da inteligência divina. Isso quer dizer que, apesar de termos impulsos irracionais no que se refere aos nossos instintos, possuímos um fragmento da divindade, por meio do qual compreendemos o Cosmos e nos interligarmos à Natureza. 

Ainda dentro deste tópico, devemos destacar a originalidade do autor ao compreender a filosofia estoica através de um caráter comunitário: compreender que fazemos parte da comunidade cósmica implica também entender que somos membros de comunidade humana. Para os estoicos…vivemos em uma grande cidade cósmica habitada por deuses e humanos.

O Tópico da Persuasão, que, segundo Epicteto, é para aqueles que já dominaram os dois primeiros, se inicia reconhecendo a existência de representações intensas que nos persuadem a buscar e evitar coisas que não estão sobre o nosso encargo, mesmo que tenhamos corrigido nossos juízos. Uma forma de se opor à persuasão é dizer a cada representação violenta: és representação e de modo algum és o que se apresenta. Ou seja, devemos diferenciar entre a imagem capturada pelos sentidos e sua interpretação feita por nós.

No capítulo IV, finalizando com sua proposta inicial de ajudar o leitor na construção de seu próprio Manual, Dinucci exorta-o a praticar o exercício de virtuosos humanos como Pitágoras, Platão, Sócrates, Sêneca e Epicteto, a prática diária de auto-exame, isto é, o conhece-te a ti mesmo. Para essa tarefa, algumas regras devem ser desenvolvidas: 1) Ter as máximas à mão (podemos encontrar várias delas no Apêndice); 2) Não se exibir nem se considerar sábio jamais; 3) A comunhão consigo mesmo e o perdão a si mesmo; 4) O exercício de gratidão; 5) A visão da totalidade (experienciando a divindade); 6) Ter à mão certos conceitos fundamentais do estoicismo…dentre eles, virtude e paixão; 7) Compreender os papéis que nos cabem; 8) Fazer bom uso do tempo que nos foi dado; 9) Entender que todas as coisas ao nosso redor são efêmeras: é preciso celebrá-las; 10) Amizades.

Por fim, a obra, apesar de guiar o leitor à construção de seu próprio Manual, é, ela mesma, um Manual,
não da mesma forma que os os antigos, com máximas e pensamentos sobre comportamentos virtuosos, mas aos moldes contemporâneos, ao ser o resultado de uma pesquisa séria, detalhada e honesta sobre uma filosofia que nos tempos atuais é desmembrada não com o intuito cartesiano de recompô-la e entendê-la, mas para transformá-la em tudo mais, menos em filosofia de vida.


NOTAS

(1) Quando você coloca uma folha entre as páginas de um livro, a marca da folha fica impressa nas  páginas. Da mesma forma quando algo perfumado entra em contato com outra coisa e a perfuma. Ou seja, quando uma coisa fica em contato durante muito tempo com a outra,ela vai pegando a cor da coisa que entrou em contato. Daí a mensagem oracular aconselhar Zenão a ficar em íntimo contato com os filósofos antigos.


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