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O Vazio como Impedimento e Possibilidade do Movimento

        XVII curso de extensão em astronomia: ampliando novos horizontes do  universo acontece no auditório do PAF III | IHAC - UFBA


Por Joelson Nascimento

  

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 

Para Aristóteles, o vazio impediria o movimento do Universo. Por outro lado, Lucrécio diz ser improvável a existência do movimento sem um espaço vazio como possibilidade. Mostraremos os argumentos utilizados por esses dois filósofos para a explicação desse fenômeno. Para os argumentos aristotélicos, utilizaremos o Capítulo 3 do livro A estrutura das revoluções copernicana, de Tomas Kuhn, traduzido por Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira, de 2006. Nesta obra, Kuhn faz uma análise da cosmologia aristotélica encontrada na obra Dos Céus. Para os de Lucrécio, nos servirá de base sua obra intitulada Da natureza, da Coleção Os Pensadores de 1988, traduzida por Agostinho da Silva.

 

HORROR VACUI ARISTOTÉLICO

 Conforme Kuhn (p.105), os gregos tomam para si o termo ‘horror vacui’ (horror ao vácuo) por conta de algumas evidências empíricas. A mais comum era a percepção de que a água apenas sairia de um recipiente, por uma estreita abertura, se o ar conseguisse entrar e substituir o espaço vazio deixado por ela. Era impensável que o líquido caísse sem essa substituição imediata do vácuo pelo ar. Eles acreditavam que as bombas d’águas partiam do mesmo princípio, ou seja, que a água só era retirada de um posso por conta do ar que a empurrava para fora. Se o vazio existisse, a água cairia novamente no fundo. Para Kuhn, era difícil provar o contrário, pois ainda não existiam instrumentos que pudessem produzir o vazio. Não existia uma contra prova empírica, como uma bomba de vácuo, por exemplo. Sem instrumentos desse jaez, as dificuldades da linguagem não podiam ser resolvidas. Ora, se o espaço tinha como conceito um volume que era ocupado por matéria, como definir o espaço na ausência de um corpo?: “aparentemente [o espaço] não pode existir por si só” (KUHN, p.105).

Essas evidências lógicas e empíricas eram suficientes para a confirmação da existência do vazio: “Rejeitar o ‘horror vacui’ significava necessariamente destruir uma explicação científica inteiramente satisfatória para um grande conjunto de fenômenos terrestres (KUHN, p.105). O que veremos a seguir, é que para Aristóteles, essas evidências apontavam e explicavam uma estrutura muita mais complexa e abrangente do que a retirada de água de poços: a ausência do vazio explicava o funcionamento do Universo.

O universo aristotélico era cercado por uma esfera de estrelas. Dentro dessa esfera estavam os planetas e todos os astros do céu (KUHN, p.96). Do lado externo da esfera reinava o vazio, significando que se não existia matéria, logo, não poderia haver espaço. Isso dava ao universo aristotélico uma dimensão finita e única: “a matéria e o espaço devem terminar juntos: não é preciso construir uma parede para limitar o universo a seguir interrogarmo-nos sobre o que limita essa parede” (KUHN, p.96). A partir da esfera limitadora do cosmos, outras circulavam em um único centro que se encaixavam de forma perfeita formando uma única esfera, tendo no seu interior a esfera que continha a lua (KUHN, p.96). Ao todo eram cinquenta e cinco esferas formadas pelo elemento éter, uma substância distinta dos elementos encontrados aqui na Terra (fogo, terra, água e ar) por ser mais leve e possuir um grau de pureza maior.

O encaixe das esferas transformava o Universo em uma gigantesca engrenagem. O contato entre elas era possível porque o espaço era todo preenchido por matéria, possibilitando assim seu movimento: 

 

A esfera de estrelas movimentava a sua vizinha mais próxima, a mais exterior das sete armações homocêntricas que movia Saturno. Esse invólucro fazia mover a sua vizinha interior mais próxima do conjunto de Saturno etc., até que o movimento era finalmente transmitido à esfera mais interior do conjunto que transportava a lua. Este era o mais interior dos invólucros etéreos, a fronteira mais interior da região celeste ou supralunar (KUHN, p.97). 

A última esfera era predominantemente formada pelos elementos fogo, ar, água e terra, cada um contido em um invólucro próprio. Caso o impulso que as esferas proporcionavam ao se tocarem não existisse, cada elemento estaria em seu lugar natural. Como o universo aristotélico coincide com o centro do Universo, o elemento Terra, por ser mais pesado, estaria concentrado também no centro. A Água, por ser menos pesada que a Terra e mais pesada que os outros elementos, estaria em uma posição mais acima. O Fogo, sendo elemento mais leve e mais pesado que o éter, estaria logo abaixo da Lua. E o Ar teria sua posição logo abaixo do Fogo. Isto é, sem o movimento, todos os elementos manteriam sua pureza: “entregue a si própria, não sendo perturbada por forças exteriores, a região sublunar seria uma região estática que refletiria as esferas celestes na sua estrutura” (KUHN, p.99).


A NECESSIDADE DO VAZIO EM LUCRÉCIO

  Diferente de Aristóteles, Lucrécio defende que nem só de matéria é composto o Universo. O vazio é um componente indispensável para entendermos o Cosmos em sua plenitude.

Conforme Lucrécio, os corpos não teriam como efetivar suas naturezas sem o vazio (I, 335), que é a de se opor e resistir uns aos outros. Sem efetivar essa natureza, não os veríamos em seus movimentos tanto pelo céu quanto pela água, pois permaneceriam em repouso, concentrados e um único ponto (I, 335-345).

Para ele, mesmo os corpos que aparentam solidez, como as pedras, possuem o vazio dentro de si, pois como poderiam as cavernas, por exemplo, quando estão pertos de cachoeiras, verterem água através de seus tetos? Além do mais:

 

dispersa-se o alimento por todo corpo dos animais. Crescem as árvores e dão seu fruto na estação própria, porque o alimento se difunde por todas elas, desde o mais profundo das raízes, através dos troncos e de todos os ramos. Passa as vozes pelas paredes e voam através das portas das casas, corre até os ossos o frio que enregela. Ora, se os corpos não tivessem vazios, absolutamente impossível seria explicar de que maneira tudo isto poderia atravessá-los (I, 250).

 Outro exemplo que ilustraria a existência do vazio são os corpos de mesmas dimensões que têm pesos distintos. Um floco de lã, afirma, pode ter a mesma dimensão de um pedaço de chumbo e pesar menos, visto que o vazio dentro da lã não tem peso: “portanto, aquilo que tem o mesmo tamanho e é mais leve mostra, sem dúvida alguma, que tem mais espaço vazio” (I, 360-365). 

E o que dizer quando peixes ou navios rompem as águas a sua frente e atrás de si essas mesmas águas que foram separadas confluem ao seu ponto original? Como um fenômeno desse pode acontecer, pergunta Lucrécio, sem o vazio? (I, 360-365).  E se dois corpos quando se chocam recuam um do outro após o contato, para Lucrécio, o ar ocupa esse lugar porque, a princípio, nada existiria entre eles.

Por fim, para Lucrécio, a natureza é composta de corpos e vazio. Sem este, a matéria não teria como mover-se em diferentes direções, não poderia ir a parte alguma (I, 420-428), ou seja, nada seria como é com a existência do vácuo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

No século XVII, Torricelli (1608-1647) realizou uma experiência com o intuito de determinar qual o valor da pressão atmosférica ao nível do mar. Para isso, foi usado um tubo cheio de mercúrio com a extremidade bloqueada. Ele colocou o tubo com a extremidade fechada para baixo em um recipiente com mercúrio. Torricelli observou que após a abertura do tubo o nível do mercúrio desceu deixando o vácuo na parte vazia (https://www.fisica.net/hidrostatica/pressao_atmosferica_torricelli.php). No século XX, com a desenvolvimento da física quântica, descobrimos que o vazio não é tão ausente de matéria quanto pensávamos. Mesmo em um espaço onde foi retirado todo o ar, existe um grande movimento de criação e destruição de antimatéria. Poderíamos então concluir que tanto Aristóteles quanto Lucrécio erraram em suas avaliações? Não acho correto pensarmos a ciência em termos de certo ou errado. Esse caminho nos levaria a desconsiderar todas as teorias que serviram de base ao que entendemos hoje por ciência. Seria injusto julgar qual das duas teorias aproximaram-se mais do nosso conhecimento científico atual. No entanto, justo atribuir a esses dois filósofos uma importância histórica e metodológica, que arriscamos dizer, serviram de base para a ciência contemporânea.


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