Por Joelson Nascimento in Socientifica.com.br
Começarei essa reflexão parafraseando algumas frases
que tenho ouvido e lido ao longo de minha vida: ‘Tudo depende de você!’; ‘Seu
destino, suas regras’; ‘O futuro é você quem faz’. Frases como essas carregam
uma mensagem clara: tudo depende de nós. Por essa ideia parecer transferir-nos
um poder divino, gostaria de refletir sobre suas consequências levantando
algumas questões: será que tudo realmente depende de nós? Se sim, como resolver
os conflitos? Se não, como ser responsáveis por nossas ações? Vamos trazer para
nossa reflexão o filósofo estoico Epicteto:
“Das coisas existentes, algumas são encargos nossos;
outras não. São encargos nossos o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa – em
suma: tudo quanto seja ação nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses,
a reputação, os cargos públicos – em suma: tudo quanto não seja ação nossa. Por
natureza, as coisas que são encargos nossos são livres, desobstruídas, sem
entraves. As que não são encargos nossos são débeis, escravas, obstruídas, de
outrem... (ENCHEIRÍDION, capítulo
1, Tradução de Aldo Dinucci e Alfredo Julien, EdiUFS: 2012, p.15).
Conforme Epicteto, a realidade funciona independentemente
de nossas ações. Isso faz com que não tenhamos controle sobre as leis da física,
assim como sobre o desgaste natural de nossas células. Porém,
está sob nosso campo de atuação a capacidade de julgar, desejar, repelir. Por
ser assim, o certo é delimitar nosso campo de atuação para não sermos tentados
a imaginar ter um poder inexistente em nós, fato comumente usado pelos
marketeiros e escritores de auto-ajuda. Desejar uma aprovação no ENEM não é
sinônimo de ser aprovado para uma Universidade. Julgar algumas leis injustas
não é sinônimo de que essas leis sejam mudadas, assim
como não desejar uma doença não é sinônimo de que nós nunca adoeceremos. No
entanto, ao termos controle sobre nossos impulsos e desejos, temos sobre nossa liberdade de ação: apesar de não estar sob o nosso encargo
ser aprovado no ENEM, está o de estudar exaustivamente para fazer a seleção. Mas
aquele concorrente também possui essa liberdade. Caso ele estude em um nível
semelhante ao meu, não seria o resultado o mesmo? Quem a natureza escolheria
para entrar na Universidade? A natureza não escolheria ninguém, mas os
critérios de desempate, sim. E quem definiu esses critérios? Pessoas que também
possuem controle sobre os desejos e juízos delas. Isso quer dizer que o
resultado dessa liberdade de atuação depende de tantas circunstâncias
exteriores a nós que a citação de Epicteto aparenta nos indicar um caminho para
a infelicidade: embora estudemos muito, nossa aprovação dependerá de um outro
que não estude tanto quanto eu; ainda que cuidemos bem da nossa saúde, existirá
a possibilidade de pegarmos uma doença grave a qualquer momento; mesmo que
cuidemos da vida, existirá a morte.
Essas conclusões podem nos indicar que a pouca liberdade que temos é tão pequena que não deveríamos chamá-la de liberdade. Por qual motivo agir se não somos livres, então? Jean Joel Duhot, em seu livro intitulado Epicteto e a Sabedoria Estoica (1966), relata-nos sobre esse tipo de pensamento chamado de o “Argumento do Preguiçoso” (p.68). Mas antes de explicá-lo, devemos entender um pouco como se dava a liberdade na Grécia antiga.
Inicialmente, a liberdade era uma condição sociopolítica, ou seja, era o estado em
que se encontrava alguém não submetido a outro. Essa submissão se dava em um sentido
principal: quando alguém era um prisioneiro de guerra. Por isso que a pergunta a
qual se fazia era se esse tipo de escravidão era ou não natural. Foram os filósofos
cínicos que primeiramente retiraram a liberdade do âmbito sócio-político e a reconduziram
para uma busca interior. Liberdade, neste sentido, é não estar preso aos
grilhões de sua própria vontade ou da vontade de outrem, e, a partir desse
momento, toda forma de escravidão física não seria empecilho para o
desenvolvimento de atividades intelectuais desenvolvidas por escravos. Com a influência
dos cínicos, os estoicos desenvolveram essa noção de liberdade, salientando,
como vimos acima, nossa impotência diante dos fenômenos físicos e nossa
liberdade diante de nossos desejos e juízos. Com isso em mente, voltemos ao “Argumento
do Preguiçoso”.
Para os estoicos, segundo Duhot (p.68), o campo de ação
no qual podemos exercer nossa liberdade é o mesmo onde encontraremos a felicidade.
Acontece que essa felicidade não é algo fácil de ser conquistada, uma vez que
ser livre, para Epicteto, é suportar com dignidade coisas que não dependem de
nós, tais como a morte, as opiniões alheias, as doenças, ou seja, toda dor que
acompanha o existir. Viver contempla principalmente a lida serena e brava da tristeza
de perder alguém próximo a nós; das reprovações em concursos ou entrevistas de
emprego; da tranquilidade diante de opiniões contrárias às nossas. Não, meu
amigo. Ser feliz não é para os fracos de espírito ou preguiçosos existenciais,
pois, apesar de sermos guiados por
forças naturais, somos responsáveis por nossa conduta diante do mundo.
Isso nos leva a inserir em nossa reflexão um dos
maiores exemplos contemporâneos dessa responsabilidade estoica: o General James
Bond Stockdale. Ele foi um ex-piloto de caça da marinha americana que se
transformou em um professor e pesquisador sênior do Instituto Hoover para a
Guerra, Revolução e Paz na Universidade de Stanford, Estados Unidos. Em seu
livro Coragem sob fogo, testando as
doutrinas de Epicteto em um laboratório comportamental humano, ele narra
como sobreviveu por sete anos e meio anos em Hanói, durante a guerra do Vietnã.
Ao ter seu avião abatido em setembro de 1965, Stockdale
carregava consigo duas máximas epictetianas já conhecidas por nós: existem
coisas que dependem e que não dependem de nós. Por ter isso em mente, ele
estava ciente de que passaria de um líder militar a um criminoso de guerra. Sua
posição na vida foi radicalmente mudada, como ele mesmo diz, de “um honrado,
competente e educado cavalheiro para o de um homem tomado de pânico, soluçando
e amaldiçoando a si mesmo. E daí? Viver com a falsa pretensão de que você sempre
controlará seu posto na vida é desafiar o perigo; você está pedindo para ser
decepcionado” (Stockdale, Coragem Sob Fogo, Tradução Aldo Dinucci e
Joelson Nascimento. EdiUFS: 2010, p.19).
Stockdale reage a essa situação lembrando que para
isso precisaria modelar suas atitudes utilizando o que ele definiu como
pensamentos essenciais: “Quem é senhor de alguém é aquele que possui o poder de
conservar ou suprimir as coisas desejadas por esse alguém” (Stockdale, Coragem
Sob Fogo, Tradução Aldo Dinucci e Joelson Nascimento. EdiUFS: 2010, p. 20).
A liberdade que Stockdale precisava era a de estar livre da aflição e da culpa,
porque seus torturadores tentavam impor fragilidade aos prisioneiros com isolamentos
e torturas nas cordas, os quais não tinham apenas o objetivo de atingi-lo
fisicamente. As torturas
faziam dos prisioneiros traidores não dos seus companheiros ou pátria, pois ossos
quebrados não significavam nada em comparação ao que Stockdale entendeu como
“dano estoico”: “Não busque um dano pior do que este: destruir o homem leal,
que respeita a si próprio e que se comporta com dignidade que há dentro de
você” (Stockdale, Coragem Sob Fogo, Tradução Aldo Dinucci e Joelson
Nascimento. EdiUFS: 2010, p.24). Isso mostra-nos o quão difícil é assumir a responsabilidade
de manter-se digno perante situações desfavoráveis. Epicteto, na Diatribe 2.1, a respeito disso nos diz:
“De novo, com que coisas somos
corajosos como se não fossem em nada terríveis? (10) Com as coisas passíveis de
escolha. Se somente visamos as coisas que não são passíveis de escolha, em nada
difere para nós nos enganar por completo ou nos deixar enredar ou fazer algo
vergonhoso ou desejar algo com indigna cupidez. Mas onde há morte ou exílio ou
sofrimento ou obscuridade, aí também há fuga, (11) aí também há agitação
violenta. Eis por que, como é natural aos que se enganam a respeito das maiores
coisas, por um lado, transformamos a intrepidez natural em audácia, desespero,
impudência, vergonha; por outro, transformamos tanto a cautela e o pudor
naturais em covardia e baixeza repletas de medos e confusão. (12) Pois se
alguém buscar ser cauteloso quanto à escolha e às obras da escolha, então,
imediata e simultaneamente, por querer ser cauteloso, também terá sob seu
controle a repulsa aí colocada. Mas se ser cauteloso quanto às coisas que não
estão sob nosso encargo e que não são passíveis de escolha, necessariamente
terá medo, ficará confuso e inquieto. Pois não são terríveis a morte ou o
sofrimento, mas é
terrível temer o sofrimento e a morte (DIATRIBES 2.1, Tradução de Aldo
Dinucci, Revista Prometeus: 2019, p.97).
A primeira pergunta que nos faz Epicteto é se conhecemos
as coisas com que temos de ser intrépidos. Sabemos a resposta porque ao longo
do texto, com o auxílio do estoico, mostramos que a principal etapa é separarmos
em nossa mente o que depende e o que não depende nós. A intrepidez aqui está em
controlar aquilo que é controlável. Vimos que Stockdale foi intrépido ao ir de
encontro aos seus torturadores. Apesar de eles possuírem o controle sobre o
corpo do piloto, em momento algum tinham sua vontade. Caso ele estivesse
preocupado apenas com o sofrimento que seu corpo, com certeza, teria sua
coragem para enfrentar essas dificuldades não surgiria. Se temos medo do que
acontece ao nosso corpo, por qual motivo devemos manter nossa dignidade?
Epicteto nos diz que onde há sofrimento, há fuga. Quão fácil é fugir do perigo
e quão difícil é enfrentá-lo? Cautela, pudor, coragem e todas as virtudes da
alma só podem se manifestar quando temos o controle sobre nós.
Algum leitor poderia questionar: não seria exagero
trazer, como exemplos, um filósofo antigo com seu manual do homem sábio e um
prisioneiro de guerra que sofre durante oito anos para falar apenas de
situações cotidianas como o passar em um concurso, ou conseguir uma vaga de
emprego? Para que aplicar uma dose tão grande de remédio se apenas uma gota
resolveria? Meus amigos, lembremos não apenas das questões acima, mas da ideia
que elas transportam. Caso tudo dependesse de nós, como a vaga em um emprego, ou em uma universidade, ou uma vida sem doenças, antes você presaria eliminar
todos aqueles que pensam diferente de você para que seu projeto de vida perfeito
funcione. Não é possível um mundo onde sua vontade é soberana. Se as vagas nas
universidades são limitadas, afirmar que a aprovação só depende de você é uma
falácia maldosa. Muitas das propagandas, de escolas particulares em geral,
tratam seus aprovados como campeões, e quanto
maior for sua colocação, mas prestigiado esse aluno será ao ponto
de se tornar famoso com direto a faixas e outdoors pela cidade. E os reprovados? A
lógica é simples: derrotados por candidatos mais capazes do que eles. A mesma
lógica podemos aplicar em diversas situações na vida. Essas frases nada mais
são do que uma justificativa para as injustiças sociais, como a desigualdade
econômica, em um sistema que valoriza a meritocracia com desigualdade de
condições. Não, nem tudo depende de nós, mas esse mínimo que depende pode nos
transformar em seres mais fortes, dignos e justos para enfrentarmos essas
adversidades. Não há muitas vagas, não lamente, pois isso não depende de você.
Busque sua coragem para ser o melhor concorrente possível. Não podemos evitar
doenças, mas sejamos os mais cautelosos possíveis com nosso corpo. Não conseguimos
o emprego desejado, sejamos mais persistentes, pois isso depende de nós: sermos
o melhor pra nós mesmos. Quando pensarmos dessa forma, não mais reclamaremos do
mundo, mas voltaremos todas as nossas forças para mudá-lo dentro das
possibilidades do nosso próprio mundo – o da liberdade.
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