Por Joelson Nascimento
Quando eu era jovem... era muito pobre. Estava morrendo de fome. Um dia, fiquei em frente a uma janela. Uma janela cheia de pão. Só havia o vidro entre eu e não sentir mais fome. Era tão fácil... Então, eu quebrei... e peguei o que queria. Eles me pegaram... e me acorrentaram por quase vinte anos. Fizeram coisas comigo que eu nem poderia lhe contar. E eu fiz coisas na prisão. Coisas horríveis. Eu me tornei um animal. Eles roubaram minha dignidade. Eles me tiraram tudo (Jean Valjean, Os miseráveis, dirigido por Bille August baseado no romance homônimo de Victor Hugo).
Ficar aprisionado durante vinte anos sobre a acusação de ter roubado um pão. Ter de lutar a cada dia pela vida fortalecendo-se mediante as atitudes brutais dos carcereiros. O que isso não faria ao caráter de alguém? Quem de nós já não ouviu a velha máxima de que os presídios são “universidades do crime?” Como evitar a rudeza nos atos depois de ser preso durante anos? Será que é possível viver em um ambiente hostil e ainda conservar a dignidade? Até que ponto é possível manter o caráter num meio onde a maioria das pessoas pretende extirpá-lo? Semelhante a Diógenes, o Cínico, que, ao invés de fazer uma longa e bela demonstração filosófica sobre a existência do movimento, levantou e caminhou, tomemos como exemplo um homem que manteve sua dignidade num ambiente absolutamente hostil: num campo de prisioneiros--- na guerra do Vietnam.
James Bonde Stockdale foi um ex-piloto de caça da marinha americana e professor e pesquisador sênior do Instituto Hoover para a Guerra, Revolução e Paz da Universidade de Stanford, Estados Unidos. O tema central de suas pesquisas converge para a dignidade do homem em face da adversidade. O motivo que o levou a esse estudo começa a partir de sua entrada, ou como ele próprio afirma, de sua “acrobacia aérea”, para o Departamento de Filosofia de Stanford, onde foi aluno de Philip Rhinelander, decano do curso de Ciências e Humanidades. O professor ofereceu-lhe uma cópia do livro Encherídion, de Epicteto, sem imaginar o quanto o filósofo estoico ajudaria seu aluno fora da academia, quando veio a ser prisioneiro de guerra em Hanói. Stockdale relata sua experiencia no livro Coragem sob fogo: testando as doutrinas de Epicteto em um laboratório comportamental humano (Tradução de Aldo Dinucci e Joelson Nascimento).
Ao ser abatido, em setembro de 1965, por uma bateria de fogo antiaéreo (p.13), Stockdale já tinha em mente uma das principais lições epitetianas que o ajudaria a suportar oito anos de prisão, quinze torturas, algemas nas pernas durante dois anos e confinamento na solitária por quatro anos: separe em sua mente as coisas que dependem e as que não dependem de você. O que está sob nosso controle? Quais são as coisas que dependem e as que não dependem de nossa vontade? As que dependem, afirma Epicteto, “São por natureza livres, desimpedidas, desembaraçadas; aquelas que não estão sob nosso controle podem ser impedidas, estão sob o poder dos outros” (Manual, I, Tradução Aldo Dinucci e Alfredo Julien). Desejar, escolher, formar um juízo, ter medo, anseio, alegria, aversão, aflição, depende exclusivamente de nós. É um ato da vontade, um exercício de liberdade. Ninguém pode impedir que as pessoas desejem, escolham ou tomem alguma atitude diante de uma situação, pois estas coisas são originadas no interior de cada um. Já as coisas que não dependem de nós são exteriores e dependem da anuência e vontade de outras pessoas como os elogios, a reputação, os cargos públicos. E diz Epicteto: “... Se pensas livres as coisas que são por natureza escravas, e tuas as que são de outros, tu te fará entraves, chorarás, te inquietarás, te queixarás tanto dos deuses quanto dos homens” (Manual, I,)
Por trazer consigo esses ensinamentos, Stockdale percebeu que a situação em que se encontraria dali por diante não dependeria dele: julgá-la se era um bem ou um mal, sim. A bondade e a maldade estavam dentro dele: “o mal reside no mau uso da intenção moral, e o bem no seu contrário.” (Epicteto, Diatribes in Stockdale, p.14) Assim, ao cair de paraquedas em uma pequena vila após a ejeção do seu caça, estava ciente de que passaria de um líder militar a um criminoso de guerra. Sua posição na vida foi radicalmente mudada:
Em questão de minutos daquele de um honrado, competente e educado cavalheiro para o de um homem tomado de pânico, soluçando e amaldiçoando a si mesmo. E daí? Viver com a falsa pretensão de que você sempre controlará seu posto na vida é desafiar o perigo; você está pedindo para ser decepcionado. Assegure-se então de que, no fundo de seu coração, no seu interior, você trata seu posto na vida com indiferença, não com desprezo, mas com indiferença” (p.19).
Independentemente das situações que a vida nos põe, como estar acometido por alguma doença crônica, perder os bens materiais, ou estar em uma prisão, por exemplo, não pode, para Stockdale, servir de fundamento para a mudança de caráter, mas sim como uma preparação para suportá-las com dignidade.
Stockdale percebeu que seu desejo pela liberdade física estava precedido de uma liberdade interior, por isso precisava modelar suas atitudes com o que ele definiu como “pensamentos essenciais”: “quem é senhor de alguém é aquele que possui o poder de conservar ou suprimir as coisas desejadas por esse alguém” (p.20). A liberdade de que Stockdale precisava naquele momento singular de sua vida era a de estar livre da “aflição” e da “culpa”, pois estas, segundo ele, consomem nossa vontade aos poucos e fazem com que nós estabeleçamos acordos com nossos adversários, nivelando-nos a eles.
Impor aflição e culpa era o objetivo que seus torturadores almejavam conseguir impondo aos prisioneiros fragilidade. Os isolamentos e as torturas nas cordas não tinham apenas um dano físico. Durante exaustivas sessões de torturas os soldados presos faziam confissões de culpa que os envergonhavam ao chegarem em suas celas. E diz Stockdale: “isso foi um verdadeiro choque para nossas mentes... seu impacto em nosso próprio íntimo foi muito mais impressionante, durável e significativo que nossos membros e torsos” (p.23). As torturas faziam com que os prisioneiros traíssem não os seus companheiros, mas a eles próprios. A vergonha a que se submetiam chegava ao ponto de retornarem as suas celas como legítimos traidores, e por isso se envergonhavam de falar com algum dos companheiros. Ossos quebrados não significavam nada em comparação ao que Stockdale entendeu como “dano estoico”: “não busque um dano pior do que este: destruir o homem leal que há dentro de você, que respeita a si próprio e que se comporta com dignidade” (p.24).
O líder militar sabia que o objetivo dos vietnamitas era o de fazer com que os prisioneiros enxergassem as coisas do jeito deles, e para isso faziam frequentes sessões de interrogatórios com o intuito de impor-lhes humilhação. Era um tipo de jogo onde a moeda a ser disputada era a vergonha. Não obstante, Stockdale aprendeu que a menos que ele se impusesse culpa, sairia sempre vencedor. O método era repetir uma espécie de mantra que ele sempre murmurava a caminho do interrogatório: “Controle o medo, controle a culpa, controle o medo, controle a culpa” (p.25). Apesar disso, em certos momentos de fragilidade seus olhos começavam a denunciar o medo e a culpa. Para evitar tal situação, desviava o olhar do rosto do seu interrogador e concentrava-se no lóbulo de sua orelha esquerda. A frequência com que faziam os interrogatórios fortalecia-o ainda mais. Felizmente a maioria dos prisioneiros que praticavam essas mesmas ações estavam coadunando com este mesmo tipo de discurso:
Estamos num lugar onde nunca estivemos antes. Mas merecemos manter nossa dignidade, e nos sentir contra atacando. Não podemos nos negar a fazer cada coisa degradante que eles nos exigem, mas depende de você, que está no comando, escolher coisas que todos nós devemos recusar a fazer a menos e até que eles nos façam passar novamente pelas torturas. Nós merecemos dormir à noite. Merecemos, pelo menos, ter a satisfação de que estamos executando a duras custas as ordens de nosso comandante. Dê-nos a lista, pelo que seremos torturados? (p.26).
Não era a comida da prisão, nem os danos físicos, nem os instrumentos usados para torturas, nem os soros da verdade, nem os choques elétricos. Tudo isso apenas o fizeram moralmente superior: “o que derruba um homem não é a dor, mas a vergonha” (p.30).
Por fim, o que são as torturas? O isolamento? As correntes presas às pernas? As humilhações frente ao seu torturador? Presumo que cada um deve possuir uma interpretação particular para cada um desses termos. Tomemos o assédio moral como exemplo. Nas relações de trabalho existem quatro tipos de comportamentos que caracterizam o assédio moral. O primeiro são as “técnicas de relacionamento”: quando o assediador, que pode ser tanto o superior hierárquico como os colegas, ignoram a vítima. O segundo são as “técnicas de isolamento”: quando a vítima recebe funções que a distancia dos colegas. O terceiro é chamado de “técnicas de ataque”: estas são ações que objetivam desqualificar a vítima diante de clientes e colegas. O último é considerado “técnicas punitivas”: colocar a vítima sob pressão com a punição de erros simples (TRENCH, ROSSI, e WATANABE ADVOGADOS, Assédio Moral nas Relações Trabalho, Comissão Jurídica - CCFB - 25 de abril de 2006 - São Paulo). Deixando de lado o dano físico, é uma situação que não fica muito distante do que sofreu Stockdale na prisão. Aqueles que tentarem viver de acordo com seus princípios, sentirão o isolamento. Os que não viverem de acordo com a opinião alheia, sentirão as correntes. Todavia, sentirão também a liberdade que transborda de suas ações e entenderão a nítida diferença entre o senhor e o escravo. Não o senhor que tem o poder dar ordens aos outros, mas a ele mesmo. É o sentido dado por Joaquim Nabuco entre a morte boa e má. A primeira é morte do homem que luta por sua liberdade: apesar das circunstâncias adversas, ele luta por seus princípios. A segunda é o homem que, além da morte física, morre também em vida quando perde sua dignidade (DINUCCI, Aldo Lopes, Joaquim Nabuco, Epicteto e a Abolição da Escravatura). Não queremos, de forma alguma, condenar aqueles que se submeteram a humilhações e perderam a dignidade em ambientes onde imperavam a extorsão e o assédio moral, apenas mostrar que há outra possibilidade que não a subserviência, a indignidade e a humilhação diante de uma situação crítica.
Fora da noite que me cobre, negra como carvão de polo a polo, agradeço a quaisquer deuses que houver por minha alma invencível. No feroz aperto das circunstâncias não tremi nem lamentei em voz alta. Sob os golpes de clava da fortuna minha cabeça está ensanguentada, mas não curvada. Para além desse lugar de cólera e lágrimas nada se insinua senão o horror da sombra, e, apesar da ameaça dos anos, encontra-me e haverá de encontrar-me destemido. Não importa quão estreita seja a passagem, quão carregada de punição a sentença. Eu sou o mestre do meu destino: eu sou o comandante de minha alma (E. HENLEY, William, Invictus).
https://quarka.com.br/as-acoes-de-um-piloto-de-caca-sob-o-prisma-epictetiano/
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