Por
Joelson Nascimento
O número 13 estava desacreditado;
agora regenerou-se. Deixou de ser um número de mau agouro, para ser uma data de
liberdade. Já não é fatal: é glorioso (Artur
Azevedo, in, Nos tempos de Patrocínio, p.143).
Acredito que o leitor não precise “puxar pela memória” para descobrir o que ocorreu nessa data tão importante para a História do Brasil. Contudo, por via das dúvidas, facilitarei sua empreitada. 13 de Maio de 1888 foi o dia oficial da abolição da escravatura em todo o território brasileiro. Oficial porque quatro anos antes, com o inestimável auxílio de Francisco José do Nascimento, cognominado por José do Patrocínio como o “dragão do mar”, o estado do Ceará erradicava a escravidão dos negros mediante ações como greves de jangadeiros e “vaquinhas” para a compra de cartas de alforria[1]. Há tempos que no Brasil vinha sendo cultivado o clima de liberdade e esperança (a lei do ventre livre foi promulgada em Setembro 1871 e Lei Eusébio de Queirós em 1850).
Não tenho por objetivo, nesta reflexão,
debruçar-me sobre as consequências sócio políticas e econômicas a que foram
submetidos negros e mulatos após a abolição. O que desejo compartilhar com
vocês é algo que chamou a minha atenção na narrativa de Ciro Vieira da Cunha,
em seu livro intitulado No Tempo de Patrocínio, publicado em 1960 pela
Editora Saraiva. Na obra, o autor faz um
paulatino relato do sentimento de alegria que envolveu a assinatura da Lei
Áurea, no Estado do Rio de Janeiro.
O documento foi assinado no Paço Imperial,
como todos sabemos, pela Princesa Isabel, que, naquele momento, estava a
substituir o Imperador D. Pedro II. O projeto que extinguia a escravidão foi
aprovado pelo Senado em uma sessão especial. Cicero Vieira nos conta que no momento
da aprovação todo o plenário aclamou o ato fazendo com que esse sentimento chegasse
às ruas do Rio de Janeiro, onde os abolicionistas já tinham organizado uma
festa com bandas de música e fogos de artifício (p.137-138). Formando uma
grande onda de satisfação e júbilo, o povo, junto ao senado, segue em direção
ao Paço levando consigo o documento para a sansão da Princesa que acabara de
chegar de Petrópolis especialmente para tal fim. O palácio ficou cercado de
entusiastas que a todo instante gritavam vivas e salves aos abolicionistas. Não
é sem dificuldade que os senadores entram no Paço e seguem à sala do Trono com
o tão esperado documento:
A princesa Imperial Regente em nome
de S. M. o Imperador o Sr. D. Pedro II faz saber a todos os súditos do Império que a assembleia geral decretou e
ela sancionou a lei seguinte:
Art. 1º --- É declarada extinta
desde a data desta lei a escravidão no Brasil.
Art. 2º --- Revogam-se as
disposições em contrário (Nos tempos de Patrocínio, p.139).
Ontem assisti, pela primeira vez, a
uma legítima expansão popular; vi a multidão rir e chorar de prazer; vi uma
raça, até então amaldiçoada, cantar em plena rua a Marselhesa[2] da alegria, música feita
de benção e soluços. Defronte de mim passou uma fila de negros e mulatos, de
braço dado, enchendo toda a largura da Rua do Ouvidor, entre eles havia
mulheres e crianças; um preto velho, tonto de satisfação, parecia ter
enlouquecido. Em cada chapéu, derreado para trás, havia uma folha brasileira;
em cada olhar, um raio de vitória; em cada rosto, o fulgor cintilante de uma
alma nova, nascida de repente do monturo negro da escravidão (Nos tempos de
Patrocínio, p.141).
Como
era bastante comum em momentos de imensa alegria, seja por reconhecimento ou
admiração, as pessoas dispensarem os cavalos das charretes e assumirem o lugar deles
para homenagear uma figura importante, tentaram fazer o mesmo com o carro da
Princesa Isabel, que não permite tal demonstração de carinho.
Pela relação que temos com os políticos e pela
relação que os políticos têm com o Estado, não é de todo mal suspeitar se a
alegria dos políticos refletia suas verdadeiras intenções por trás da valorosa
assinatura. O próprio Aluízio de Azevedo, que nos mostrou mais acima o
sentimento de alegria brotado desse dia, em seu romance, O Cortiço, fala de uma comissão de abolicionistas diplomando a personagem João Romão, um homem que explorou e fez fortuna a custa do trabalho de uma
negra. Podemos e devemos tecer
críticas sobre todo processo que envolveu a libertação dos escravos, mas é
difícil duvidar das manifestações espontâneas de um povo. O clima de alegria
geral, por mais que seja por motivos vis e perversos, não pode ser visto como falso.
As pessoas realmente são tomadas por sentimentos que transbordam de si,
principalmente quando afetadas por sentimentos semelhantes vindo de outras
pessoas, a exemplo da comemoração de um gol em um estádio repleto de
torcedores. A historiadora Mary Del Priore, no documentário Guerras do Brasil.doc, nos conta que após a a Guerra do Paraguai (1864-1870), a relação entre dos soldados brancos e mulatos mudaram em relação aos soldados negros, pois passaram a ser, a partir daquele momento em diante, irmão em armas. Tamanha foi a legitimidade desse sentimento que o exercício brasileiro não mais persegue os negros fugidos.
Quando me deparei com a narrativa dessa
manifestação popular ocorrida um momento histórico que ecoa até os nossos dias,
quis resgatar um instante de alegria que pouco tempo depois transformara-se em
luta por sobrevivência. O 13 de Maio deixa de ser feriado nacional na Revolução
de 30. Com isso, em minha
opinião, a data perdeu um pouco de seu valor político. Todavia, seu valor moral permaneceu cada vez
mais forte, pois, ainda hoje, é uma data que renova o compromisso de luta não
apenas para os negros, mas para todos que, de alguma forma, são vítimas de opressões
de diferentes matizes. Como disse José do Patrocínio, por conta da morte de uma
negra por maus tratos: “Não é o cadáver de uma escravizada que lançamos no
túmulo: é a honra de uma nação inteira que é hoje aqui sepultada!” (José do
Patrocínio, No Tempo de Patrocínio, p. 72). Por isso, o 13 de Maio deve ser visto como uma conquista da
humanidade contra a ideia de que uma cultura diferente da nossa seja, de alguma
forma, inferior. Assim como o helenismo mostrou (ou impôs) aos gregos a diversidade da
cultura oriental, a cultura negra nos mostrou a riqueza de suas tradições nos
deixando devedores no plano da dança, culinária, religiosidade, etc.
Meu desejo é que o 13 de Maio seja lembrado não apenas pela quebra dos grilhões,
mas também pela alegria jorrada verdadeiramente do povo. Gostaria que fosse
lembrado também da mesma forma que lembramos de um título no futebol, de uma vitória
da nossa escola de samba favorita, de uma aniversário repleto de familiares e
amigos próximos. Enfim, peço que todos lembrem do 13 de Maio de 1888 não apenas como um manobra política, mas como uma manifestação sincera de todos
aqueles que sofreram e lutaram contra um regime desumano. Alegrai-vos meus amigos! Pois
todo dia há de ser 13 de Maio de 1888.
[1] “Raras vezes a nossa capital terá assistido a uma festa tão brilhante como foi a instalação da Sociedade das Cearenses Libertadoras. Impossível é descrever-se todas as particularidades que formaram o brilhantismo daquele espetáculo novo em nossa província... Foram conferidas 62 cartas de liberdade, muitas a título gratuito e outras a custa de generosos donativos obtidos pela incansável e ilustre comissão das cearenses libertadoras. Não temos lembrança de haver-nos assistido a um espetáculo nem mais solene, nem mais esplendido. Honra à província do Ceará! Honra às ilustres senhoras cearenses da nova sociedade libertadora” (Discurso proferido por José do Patrocínio em 30 de novembro de 1882, in Nos tempos de Patrocínio, p.90).
[2] Hino nacional francês que ganha destaque na revolução francesa.
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