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Ovídio e As Quatro Idades do Ser Humano



Ovídio e As Quatro Idades do Ser Humano
                                                                                                                                                            Por Joelson Nascimento


Antes de haver o mar e as terras e o céu que cobre tudo, a natureza inteira tinha a mesma aparência, chamada de Caos; massa bruta e informe, que não passava de um peso inerte, conjunto confuso das sementes das coisas. Nenhum Titã, ainda, oferecia luz ao mundo, nem Febe renovava constantemente o seu vulto, nem a Terra se sustentava por seu próprio peso, rodeada pelo ar, nem Anfitrite estendia os braços ao longo da Terra. A terra, o mar e o ar se confundiam, a terra era instável, os mares eram inavegáveis, o ar carecia de luz: coisa alguma ostentava a sua própria forma, umas coisas se opunham às outras, eis que, em um só corpo, o frio lutava com o calor, a umidade com a secura, o que era macio com o que era rígido, o que não tinha peso com o pesado. (1)


O poema nos mostra um período de indeterminação e unidade de elementos. Não há ainda os corpos distintos resultantes de uma ordem cósmica. Ovídio fala de ‘massa bruta’, assim como a matéria não qualificada. Estoicamente falando, como se o pneuma ainda estivesse em ‘luta’ com a matéria. Nesse contexto, nada no formato que conhecemos pode existir. Todavia, esse ‘caos’ não é permanente. Um deus, como afirma, dispõe o mundo de certa forma, permitindo o desenvolvimento dos seres, garantindo-lhes individualidade. Em seguida, um dos deuses dá à Terra um formato de disco a fim de evitar a desigualdade dos lados; dispõe as ondas do mar e os ventos; uni fontes, pântanos e lagos; estende os campos para formarem vales; dispõe os rios para que desaguem na terra ou no mar. Após fixar os limites, as águas passam a abrigar os peixes, enquanto a terra, os animais selvagens, e, o ar, as aves. Por último, foi criado um ser de mente superior capaz de dominar os outros animais: “Ao passo que os outros animais se inclinam para a terra, ele deu ao humano um rosto voltado para o alto, mandando-o encarar o céu e contemplar os astros. Assim, a terra...acolheu as figuras...dos humanos”. (2)  E é exatamente a história humana atrelada ao movimento cósmico que será dividida por Ovídio em quatro períodos.

O primeiro deles é nomeado ‘Idade do Ouro’. É um período mais próximo do estágio inicial da criação. O momento em que os humanos eram honestos, não necessitavam de juízes, punições, nem das Lei das XII Tábuas.(3) A construção de barcos para exploração de outros locais ainda não existia, muito menos instrumentos bélicos, fossos e muralhas. A vida era tranquila, pois não havia a necessidade de arar a terra, já que esta ofertava os seus fartos frutos aos humanos que, sem quaisquer esforços, colhia-os das árvores em uma primavera perene: “[...] mesmo a terra não arada ostentava searas, e os campos sem trato branquejavam com as pesadas espigas. Corriam [...] rios de leite, [...] rios de néctar, e o dourado mel escorria da verdejante azinheira”.(4)

Depois, uma vez “precipitado Saturno no tenebroso Tártaro”,(5) a segunda idade a surgir é a de ‘Prata’, a qual, governada por Júpiter, é a “pior que a de ouro, mais valiosa que a de Bronze”.(6) Nesta, a primavera tem sua duração reduzida para a implementação das outras estações, o que proporcionou épocas de período mais quente e mais frio. Esse acontecimento em especial, afirma Ovídio, fez os humanos buscarem abrigos, arar a terra e consumir os animais.

Ovídio não fala muito sobre a ‘Idade do Bronze’, limitando-se a afirmar que foi uma era onde os humanos dispunham de armas terríveis, mas não criminosas. Já na última Idade, a do Ferro, os males, de forma brutal, surgiram, incitando os humanos à subtração de toda a vergonha e toda a lealdade e as substituindo pela violência e pelo dolo. Incipientes na arte de navegar, ainda assim os humanos lançaram-se ao mar em busca de terras desconhecidas. Surgi a arte da agricultura, não deixando mais ao encargo da terra sua nutrição. Escavaram a terra para retirar dela o ferro e o ouro, o que fez surgir a ganância e, por conseguinte, a guerra. O roubo transformou-se em meio de vida. Não há mais harmonia entre os membros de uma mesma família: 


O esposo ameaça a vida da esposa, e ela a do marido; as sinistras madrastas preparam venenos terríveis; o filho pretende abreviar os dias do pai. Jas vencida a piedade, e a Virgem Astréia,7 última criatura celestial, abandonou a terra empapada de sangue. 8


Em síntese, semelhante a criação estoica do universo, o estado inicial do Kosmos, em Ovídio, é caracterizado pela indistinção. Um caos de matéria não qualificada. Em seguida, os limites são fixados: a água sendo o local para os peixes, a terra para os animais selvagens e o ar para as aves. Depois dessas determinações, surge o ser humano, os quais, na sua primeira idade, eram honestos. Eles ainda não possuíam a técnica para a construção de barcos nem tampouco instrumentos bélicos. Eles viviam da terra, que oferecia tudo o que precisavam sem a necessidade de cultivo. Já na segunda idade eles sofrem com as mudanças climáticas, o que os faz desenvolver a técnica da agricultura e a exploração dos animais. Por fim, na terceira idade, não temos nenhum fenômeno físico que explique a razão dos humanos recorrerem à armas terríveis, porém não criminosas. No entanto, é nesta mesma terceira idade que o ser humano tenta modificar a natureza explorando os mares sem a capacidade de fazê-los; extraindo da terra elementos que se tornaram fontes de desgraças, como o ferro e o ouro para a guerra. 


1.  Ovídio, As Metamorfoses, I. Tradução de David Jardim Júnior.

2.  Ibid, loc. cit.

3. Leis da República Romana aplicadas pelos pontífices e representantes da classe dos patrícios que as mantinham em segredo. Frequentemente aplicadas contra os plebeus. Fonte: https://www.infoescola.com/direito/lei-das-doze-tabuas/.

4.  Ovídio, As Metamorfoses, I.

5.  Ibidem.

6.  Ibidem.

7.  Filha de Júpiter e Têmis, que vivia na terra durante a Idade do Ouro, partindo na Idade do Bronze.

8.  Ovídio, As Metamorfoses, I.












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