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A ANÁLISE DO DEVER POR JAMES BOND STOCKDALE

 


 Joelson Santos Nascimento (VIVA VOX / UFS)  

in Anais do V Seminário VIVA VOX

 

Resumo

No tocante à Declaração Universal dos Direitos Humanos, podemos considerá-la uma resposta da comunidade internacional aos crimes cometidos contra a humanidade ao longo dos anos 30 e 40. A Declaração, afirma Sérgio Adorno[1], tem como base a concepção estóica do homem cosmopolita, sem pátria e cidadão do mundo, concebendo todos os homens livres e iguais. Nos trinta artigos da declaração estão explícitos os direitos de todos os seres humanos independentemente de sua raça, nacionalidade e crença. Mas essa conquista apenas foi o começo para que os cidadãos deixassem um pouco de lado um componente necessário para pensarmos o direito: o dever. Stockdale pode nos ajudar nessa reflexão mostrando exemplos de homens que independente de prêmios ou condenações, cumpriram seu dever de forma digna.

 

Palavras-chave: direitos, deveres, dignidade

Abstratct

 

No corrente ano, a Declaração Universal dos Direitos Humanos faz 60 anos. Podemos considerá-la uma resposta da comunidade internacional aos crimes cometidos contra a humanidade ao longo dos anos 30 e 40. A Declaração, afirma Sérgio Adorno[2], tem como base a concepção estóica do homem cosmopolita, sem pátria e cidadão do mundo, concebendo todos os homens livres e iguais. Nos trinta artigos da declaração estão explícitos os direitos de todos os seres humanos independentemente de sua raça, nacionalidade e crença. Mas essa conquista apenas foi o começo para que os cidadãos deixassem um pouco de lado um componente necessário para pensarmos o direito: o dever. A mídia, a todo o momento, anuncia os direitos do consumidor, das crianças e dos adolescentes, dos idosos, o direito daqueles que trabalham uma semana inteira de procurar diversão aos finais de semana, os direitos de todos, ao menos uma vez na vida, fazer uma viagem para fora do seu país, e assim por diante. São direitos de todos os tipos e matizes. Em nossa Carta Magna, por outro lado, o Título II, dos Direitos e garantias fundamentais, começa o seu capítulo I desta forma: “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”[3]. Existem os deveres do cidadão, mas, como podemos perceber, nossa sociedade não dá tanta atenção à questão dos deveres do cidadão quanto o faz em relação aos seus direitos.

Stockdale, em suas reflexões, percebe esse descompasso e procura trazer para o primeiro plano, ao lado da questão dos direitos de todo cidadão, aquela de seus deveres. Para isso, parte de um exemplo histórico de conduta que tem como base o dever, citando a célebre frase escrita na bandeira da esquadra britânica comandada pelo Almirante Lord Horatio Nelson, na batalha de Trafalgar[4]. Podemos dizer que essa frase posta na bandeira expressou o começo da derrota da dominação napoleônica sobre a Europa. O Almirante Nelson tinha ordenado aos seus homens que hasteassem uma bandeira na qual estava escrita a seguinte frase: “England expects that every man will do his duty”[5]

Stockdale analisa o termo “esperar”, contido na frase, no sentido de “expectativa”, isto é, o que se espera de alguém em uma determinada situação ou em um determinado posto, pois essa é uma idéia que faz parte da concepção de dever. E, para empreender essa análise, reflete sobre as concepções dos gregos antigos quanto a esse tema.

A palavra usada pelos gregos para definir virtude ou excelência moral era areté. Um homem bom, que possuísse areté, era aquele do qual se esperava o bom desempenho de seu papel, independendo de sua situação particular no mundo. O que era esperado de um bom sapateiro? Que fizesse bons sapatos. E de um bom navegador? Que navegasse bem, principalmente sobre um mar revolto. E um bom soldado? Que possuísse certas características em um campo de batalha, como, por exemplo, coragem e obediência. A coragem (andréia) devia ser a virtude do homem em todas as situações da vida, tanto na vida civil quanto na militar. Para os gregos, o homem verdadeiramente bom deveria possuir todas essas características não somente em função de sua profissão, seja de sapateiro, navegador ou de soldado, mas também em função de sua humanidade.

Essa forma de definir o “homem bom” perpassou o apogeu grego e influenciou o estoicismo através de uma célebre metáfora muito usada pelos filósofos estóicos: a metáfora do ator, da peça teatral e do dramaturgo. De acordo com essa metáfora, todo homem e toda mulher eram chamados à bem desempenhar um papel escolhido pela divindade. Assim como Ulisses que, tanto na Ilíada, quando estava no papel de um valoroso guerreiro, quanto na Odisséia, quando cumpriu ora o papel de joguete nas mãos dos deuses, ora o de um homem sem pátria e dependente dos favores alheios, não deixou de possuir e exibir as virtudes, tais como nobreza e coragem:

 

...Não vês que nem com uma voz mais bela e com mais prazer, Pólos interpretava Édipo Rei ou Édipo em Colono, errante e mendicante? Ora, um homem nobre se apresentaria pior do que Pólos, na medida em que não interpretasse belamente todo papel atribuído pela divindade? Não imitaria Odisseu, que em farrapos não se distingui menos que em espesso manto púpura?[6]

 

 Assim também como Sócrates, que, conforme Platão nos diz em sua Apologia de Sócrates, cumpriu o papel que lhe fora designado pela divindade:

 

Grave falta, atenienses, teria cometido eu, que, em Potidéia, em Anfípolis e Délio, permaneci, como qualquer outro, no posto designado pelos chefes por vós eleitos para me comandar e ali enfrentei a morte, se, quando um Deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida de Filósofo, submetendo a provas a mim mesmo e aos outros, desertasse do meu posto por temor da morte ou de outro mal qualquer. [7]

 

O filósofo estóico Epicteto desenvolve essa reflexão de Sócrates:

 

Lembra que és um ator no drama[8] teatral que o poeta dramático escolher: se Ele o quiser breve, breve será o drama, se longo, longo; se quiser que cumpras o papel de mendigo, cumpre também esse papel de modo digno. E, da mesma forma, se coxo, se magistrado, se simples cidadão. Pois isto é teu: encenar belamente o papel que te é oferecido. Mas cabe a outro escolhê-lo.[9]

 

 

Epicteto compara nossa vida a um drama teatral onde nós somos os atores.[10] A escolha do papel a interpretar, por exemplo, um mendigo ou um magistrado, fica a cargo de Deus. O nosso dever é o de cumprir belamente e do modo digno o papel que nos é oferecido.

Tornando à frase que Nelson ordenou que fosse posta na bandeira, podemos indagar: será que ele, ao pedir aos ingleses que cumprissem o seu dever como soldado também agiu como se deve? O próprio Nelson perdeu um olho em ação, bem como, depois, o braço direito, e ainda lutou durante os sete anos seguintes. Gravemente ferido, recusou atendimento prioritário dos cirurgiões em prol de seus soldados. Robert Southey, em sua obra intitulada A Vida de Nelson fala-nos mais sobre sua personalidade:  

 

Nunca houve um comandante mais amável. Ele governou seus homens por meio da razão e do afeto; eles sabiam que ele era incapaz de capricho ou tirania; e eles o obedeciam com prazer e alegria, porque ele possuía a confiança e o amor de seus comandados. “Nosso Nelson” assim eles o chamavam, “é bravo como um leão e gentil como um cordeiro”. Ele detestava disciplina severa. Apesar de ter sido educado numa rígida escola, nunca infligia punições corporais se  fosse possível evitá-las. E, quando era obrigado a aplicá-las, ele, que se familiarizara com ferimentos e morte, sofria como uma mulher. Em toda a sua vida Nelson nunca foi conhecido por comportar-se perante um oficial de forma não gentil. Em Nelson havia mais do que facilidade e humanidade de uma natureza feliz [...] seu olhar era ativo e cheio de benevolência, cada vez mais preocupado e não apenas fazer justiça, mais fazer o bem.[11]

 

Estamos mesmo a falar sobre um líder militar? O Almirante Nelson ficou conhecido como o maior estrategista naval da história, pois se preocupou em cumprir o seu papel e, como foi dito, não abandonou o seu posto.

Mas alguém poderia indagar: quais os motivos que nos levariam a cumprir nosso dever? Stockdale responde a essa indagação citando as três respostas oferecidas por Locke, em seu Ensaio sobre o entendimento humano, à seguinte pergunta: “Por que um homem deve manter sua palavra”?[12] Locke começa pela resposta que nos seria dada por um cristão. Este diria: “Porque Deus possui o poder da vida e da morte e ele quer isto de mim: que eu mantenha minha palavra”[13]; A segunda resposta é a do homem hobbesiano: “Porque a sociedade o requer e serei punido pelo Estado se não cumprir a minha palavra”[14]; a terceira seria a resposta do homem grego antigo: “Porque não manter a sua palavra é desonesto, rebaixando a dignidade do homem, em oposição à virtude (arete)”[15]

Duas dessas respostas, afirma Stockdale, a cristã e a hobbesiana, derivam-se do comando de uma lei externa: a lei de Deus e a do Estado (nesse sentido não seria difícil entender o porquê do cumprimento da promessa religiosa e do contrato civil). A terceira, a resposta grega, não se funda em uma compulsão externa. Ela mostra a possibilidade de entender o dever como liberdade da ação. Da mesma forma, a resposta estóica quanto à razão pela qual devemos cumprir o nosso papel esta fundada na liberdade, sem recompensas e sem punições que tenham sua origem na externalidade: “O dever, nessa perspectiva, tem uma característica absoluta. O dever é isto: sua própria justificativa”[16].  .

Nesse contexto, Stockdale cita o exemplo do filósofo alemão Immanuel Kant. Também para este, a obrigação moral está assentada em uma convicção interna do dever, em uma lei que provém de nós mesmos e não de um governo exterior. Apesar de ter sido um homem religioso, Kant nunca invocou a religião como justificativa de suas idéias, confiou apenas no que ele chamava de razão pura. A lei definida por nós é resultado de nossa liberdade. Como a firma Stockdale: “A antiga ironia da necessidade de disciplina para o exercício da liberdade.”[17] A obrigação para cumprir o nosso dever deve ser incondicional. O Imperativo Categórico foi o nome dado por Kant para o comando da consciência para uma ação moral dentro do sentido puro do dever.

Pode-se indagar ainda: Qual seria o lucro do cumprimento do nosso dever? O Almirante Nelson morreu em batalha, no entanto foi vitorioso cumprindo seu dever. Sócrates não deixou de cumprir as ordens do deus e morreu observando as leis de Atenas. Epicteto reza a lenda, assistiu calmante o seu senhor quebrar-lhe a perna, mas não perdeu sua dignidade. O próprio Stockdale foi torturado em Hanói e por pouco não “abandonou o palco”; contudo, resistiu bravamente às tentativas de seus carcereiros de humilhá-lo e fazê-lo denunciar seus companheiros.

Como dissemos, o dever pelo próprio dever não busca recompensas e nem é coagido pelo medo das punições. Esse caráter puro do dever torna-se, nos dias de hoje, de uma forma geral, um assunto “chato, careta, impopular”, pois, como dissemos vivermos num mundo onde as pessoas se esquecem de, ou mesmo ignoram os seus deveres, especialmente quando não vêem no cumprimento desses deveres qualquer perspectiva de lucro ou, correlativamente, não temem mais as conseqüências externas do não cumprimento do dever. A perspectiva clássica e a estóica, por outro lado, estimulam o cumprimento do dever associando a ele um valor per se. Conquistamos os direitos, mas em contrapartida nos afastamos dos deveres. Os exemplos de Nelson, Odisseu, Sócrates, Epicteto, mostraram que foi preciso, para cada um deles, fazerem uma escolha: a de tornarem-se livres para cumprir o seu dever. Mas esta escolha não trouxe recompensas com as quais estamos acostumados quando adquirimos nossos direitos. Nelson perdeu um olho e um braço em batalhas; Odisseu ficou perdido por anos, sem conseguir voltar para casa; Sócrates foi condenado à morte; Epicteto teve a perna quebrada por seu senhor. Enfim, são exemplos que podem nos ajudar, por mais que seja impossível para alguns segui-los, a pelo menos, quando falarmos em direitos perguntarmos antes: estamos cumprindo nosso dever?

 

 

 

3- BIBLIOGRAFIA

ARRIANO, Flávio, O manual de Epicteto: Apotegmas da sabedoria estóica, 2ª Edição, Tradução de Aldo Dinucci, Antonio Tarquínio, São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2008.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil (1988), 17ª edição, Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001. (Série Textos Básicos)

EPICTETO, Testemunhos e Fragmentos, (Org.) de Aldo Dinucci e Alfredo Julien, São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2008.

NASCIMENTO, J, S, Resenha do Manual de Epicteto: aforismos da sabedoria estóica, in Prometeus: Filosofia em Revista, Ano 1 – No .1 Janeiro-Julho/ 2008.

PLATÃO, Apologia de Sócrates, Tradução de Enrico Corvisieri, São Paulo: Editora Nova Cultural,1999. (Coleção Os Pensadores)

STOCKDALE, James Bond, Duty in A Vietnam Experience: Ten years of Reflection, California: Hoover Institution on War, Revolution and Pace, 1992. (Hoover essays)

STOCKDALE, James Bond, Courage Under Fire: testing Epictetu’s doctrines in a laboratory of human behavior, California: Hoover Institution on War, Revolution and Pace, 1992. (Hoover essays)



[1] ADORNO, Os primeiros 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, p01

[2] ADORNO, Os primeiros 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, p01

[3] Constituição da República Federativa do Brasil, p.15

[4] A Batalha de Trafalgar foi uma batalha naval que ocorreu entre a França e Espanha contra a Inglaterra, em 21 de outubro de 1805, na era napoleônica, ao largo do cabo de Trafalgar, na costa espanhola. A esquadra franco-espanhola era comandada pelo almirante Villeneuve, enquanto a inglesa era comandada pelo almirante Nelson, para muitos o maior gênio em estratégia naval que já existiu. A França queria invadir a Inglaterra pelo Canal da Mancha, mas antes tinha que se livrar do empecilho que era a marinha inglesa, comandada por Nelson.

[5] STOCKDALE, Duty in A Vietnam Experience: Ten years of Reflection, p.67

[6] EPICTETO, Testemunhos e fragmentos, p.31

[7] PLATÃO, Apologia de Sócrates, p.55

[8] A palavra “drama” origina-se na Grécia Antiga significando ação (δράω)

[9] ARRIANO, O manual de Epicteto: Apotegmas da sabedoria estóica XVII, p.29

[10] NASCIMENTO, Resenha do Manual de Epicteto: Aforismos da Sabedoria Estóica

[11] Apud, Stockdale, 1992, p.69

[12] STOCKDALE, Duty in A Vietnam Experience: Ten years of Reflection, p.70

[13] Ibidem, p.70

[14] Ibidem, p.70

[15] Ibidem, p.70

[16] Ibidem, p.70

[17] “The age-old irony of the necessity of discipline for freedom.

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